A carga dupla de má nutrição: um novo desafio nutricional

Estudos revelam que a associação entre subnutrição e obesidade pode tornar um indivíduo mais susceptível a doenças e mais resistente a tratamentos.

Ao longo das últimas décadas, o tema obesidade tem sido foco de diversos estudos científicos e ganhou bastante destaque na mídia em todo o mundo. Com o rápido desenvolvimento tecnológico e mudanças sociais, houve maior consumo de alimentos processados que, associado a redução da atividade física, levou ao aumento significativo do número de pessoas com sobrepeso e obesidade.

Segundo a Organização Mundial de saúde (OMS): “Mais de 1 bilhão de pessoas no mundo são obesas, dentre estas: 650 milhões são adultos, 340 milhões são adolescentes e 39 milhões são crianças. Ainda, estima-se que em 3 anos cerca de 167 milhões de pessoas adultos e crianças ficarão menos saudáveis ​​por estarem acima do peso ou obesas.”

Este fato se dá porque o aumento de peso e desenvolvimento da obesidade pode levar ao surgimento de outros problemas de saúde, conhecidos como comorbidades associadas a obesidade. Dentre elas, podemos destacar o diabetes, doenças no coração, câncer, doenças renais, dentre outras.

Apesar de já se ter debatido bastante sobre o problema da obesidade, hoje os pesquisadores se confrontaram com um novo problema. O aumento do número de adultos obesos não ocorreu apenas em países desenvolvidos, mas também em países em desenvolvimento e subdesenvolvidos.

Neste momento, podemos nos perguntar: Mas qual seria a diferença entre estes adultos obesos?

Diferentemente dos países desenvolvidos, os países em desenvolvimento/emergentes e principalmente os países considerados sub desenvolvidos enfrentam até hoje o problema da subnutrição infantil. Estima-se que cerca de 151 milhões de crianças com menos de 5 anos tem baixo peso, 47 milhões tem baixa estatura e 340 milhões apresentam deficiência de micronutrientes, com perspectiva de crescimento após a pandemia da COVID-19. Além disso, atualmente 45% das mortes de crianças em todo o mundo são atribuídos à subnutrição. Portanto, nestes países o crescimento do número de adultos obesos vem acontecendo mesmo que o problema da subnutrição infantil permaneça. Assim, foi criada uma nova definição relacionada a coexistência entre subnutrição e sobrepeso/obesidade, definida como dupla carga de má nutrição e considerada um novo desafio nutricional.

Estudos relacionados ao número de indivíduos acometidos pela dupla carga de má nutrição ainda não mostram resultados conclusivos, porém, destaca-se que as regiões mais afetadas do mundo são: África Subsaariana, Ásia Meridional, Ásia Oriental e Pacífica e o país mais afetado, Indonésia.

Segundo a OMS, a carga dupla carga de má nutrição pode ser classificada de diversas formas:

Nível individual: Por exemplo, uma pessoa apresentando obesidade com deficiência de uma ou várias vitaminas e minerais ou excesso de peso em um adulto que teve atrofia durante a infância.

Nível doméstico: Por exemplo, quando a mãe apresenta sobrepeso ou anemia e uma criança ou avô está abaixo do peso.

Nível da população: Por exemplo, onde há prevalência de subnutrição e excesso de peso na mesma comunidade, nação ou região.

Fonte: World Health Organization (WHO)

Nos últimos anos, os estudos científicos tem se concentrado em entender os aspectos políticos, sociais e econômicos da carga dupla de má nutrição. Mas em linhas claras, o que seria isto?

Basicamente determinar o número de indivíduos afetados, quais efeitos econômicos aos países e quais estratégias podem ser utilizadas para reduzir o número de afetados e tratar os que sofrem com este tipo de alteração nutricional. No entanto, como sabemos que a obesidade leva a comorbidades, alguns estudos também tem se dedicado a entender se uma pessoa que passou pela subnutrição durante o desenvolvimento é mais propensa a desenvolver comorbidades quando se torna um adulto obeso, comparado a uma pessoa que não passou pela subnutrição.

Em um estudo longitudinal recente, os autores mostraram que os adolescentes que vivenciaram a insegurança alimentar eram mais suscetíveis ao desenvolvimento de doenças durante a vida adulta. Entretanto, o porquê disto ainda permanece desconhecido.

De forma a ajudar ao entendimento deste porquê, um grupo de pesquisa do Laboratório de Pâncreas Endócrino e Metabolismo do Instituto de Biologia da UNICAMP vem se dedicando a entender quais alterações que diferenciam a carga dupla de má nutrição do modelo de obesidade sem subnutrição prévia.

Estudos realizados ao longo de mais de uma década, utilizando modelos experimentais, demonstraram que camundongos subnutridos durante a adolescência e obesos na fase adulta foram mais susceptíveis a obesidade, apresentando maior peso corporal, peso das gorduras e aumento do consumo de energia. Ainda, apresentam mais probabilidade no desenvolvimento do diabetes (uma comorbidade comum durante a obesidade), com falha na função das células do pâncreas responsáveis pela secreção de insulina, hormônio fundamental para controle da glicose sanguínea. Além disto, foi observado que roedores que passaram pela carga dupla de má nutrição são mais resistentes aos tratamentos para perda de peso e diabetes.

Em suma, estes estudos demonstram que a dupla carga de má nutrição leva a alterações diferentes da obesidade sem subnutrição prévia, que pode tornar esta pessoa mais propensa a desenvolver doenças na fase adulta e ser mais resistente a tratamentos.

Com isto, se destacou a importância de mais estudos em humanos para entender quais alterações são responsáveis por esta maior susceptibilidade e quais tratamentos podem ser melhor recomendados para estas pessoas. E ainda, ressalta o quão importante é estudar este novo desafio nutricional.

Referências:

  1. Zemrani, M. Gehri, E. Masserey, C. Knob, R. Pellaton, A hidden side of the COVID-19 pandemic in children: the double burden of undernutrition and overnutrition, Int. J. Equity Health. 20 (2021) 1–4. https://doi.org/10.1186/s12939-021-01390-w
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  8. WHO, Obesity and overweight, World Heal. Organ. (2020). https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/obesity-and-overweight.

 

SOBRE O AUTOR:

Thiago dos Reis Araujo
Biólogo, doutorando do Laboratório de Pâncreas Endócrino e Metabolismo (UNICAMP/Campinas), vinculado ao Centro de Pesquisa em Obesidade e Comorbidades. Sua linha de pesquisa tem enfoque em Fisiologia Endócrina, principalmente, envolvendo as alterações na secreção e ação da insulina e glucagon na desnutrição, obesidade e diabetes, assim como, na busca por alvos terapêuticos para o tratamento destas síndromes.

 

 

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