A alimentação diz respeito à ingestão de nutrientes e é de todas as atividades humanas a que reflete de modo mais impressionante a nossa natureza biológica e cultural. Cada alimento contém, além de seus nutrientes, um conteúdo de significados de ordem social, econômica e cultural. A comida alimenta, portanto, tanto a manutenção das funções do corpo quanto a identidade dos indivíduos. Tal identidade refere-se aos costumes, as crenças e as situações de vida dos sujeitos, expressas através de seus hábitos e práticas alimentares.
Em época de pandemia de COVID-19, a rotina pessoal, familiar e profissional de muitas pessoas foi atingida sem aviso prévio e, com ela, os nossos hábitos e práticas alimentares já tão naturalizados. Com isso, nosso comportamento alimentar, componente tão importante quanto nossas escolhas alimentares diárias, passou a ser palco de uma série de alterações drásticas diante dos novos impactos emocionais que o contexto gerou, fato que pode ser uma problemática grave, no entanto, muitas vezes silenciosa, para a manutenção da nossa saúde.
Depois de decretadas as ordens de isolamento social como principal medida não-farmacológica capaz de mitigar o crescimento da pandemia de COVID-19, causada pelo novo coronavírus, milhões de grupos familiares no mundo todo se viram obrigados a permanecer em suas residências confinados, remanejando a sua rotina e buscando novas formas de lidar com as implicações inúmeras geradas por esse processo de adaptação tão repentino. Além das adaptações e mudanças decorrentes do novo normal configurado pelo quadro, o pensamento de “O que faremos para o jantar hoje?” pode ser considerado um novo desafio diário, uma vez que a compra em massa indevida de alimentos e as interrupções nos sistemas de abastecimento da cadeia alimentar significam que alguns alimentos podem ser difíceis de encontrar. E, para muitas pessoas, o desemprego e a perda de renda estão tornando a compra de alimentos um desafio financeiro adicional.
Uma das consequências deste cenário foi a necessidade do fechamento de escolas e creches para assegurar a saúde das crianças, que logo também se viram obrigados a permanecer em seus lares, longe de suas atividades escolares, amigos, e de lazer, levando a uma alteração ainda mais drástica na dinâmica de atividades da família. Com alguns familiares ainda trabalhando remotamente, outros precisando sair de suas casas para trabalhar ou realizar outras atividades, os mais jovens também se viram na necessidade de criar suas próprias rotinas nesta nova realidade, em grande parte associadas a muitas horas consumindo conteúdos on-line. No entanto, assim como o risco de desenvolvimento de complicações advindas do estresse crônico, ansiedade e depressão tem aumentado durante o longo período de atividades sendo realizadas dentro de casa, os riscos para o ganho de peso e inadequações alimentares também são maiores e, especialmente entre crianças e jovens, muitos fatores podem passar despercebidos.
Estudos publicados durante o período da pandemia pela Obesity Society buscaram identificar potenciais riscos para o ganho de peso entre crianças por meio de um paralelo entre o recesso escolar e o período de isolamento social, condições no ano letivo com características mais similares entre si. Através de análises de estudos que acompanharam crianças nos EUA, Itália e outras regiões da América foi possível descobrir que o aumento de peso mais significativo ocorria durante os momentos em que as crianças estavam de férias, com mais tempo dentro de casa, boa parte diante de telas, realizando baixos níveis de atividades ao ar livre ou nulos. Em adição à estas condições, argumenta-se que o isolamento no contexto da pandemia proporcione agravantes nestes fatores e aumente o surgimento de outros, como a grande disponibilidade de alimentos com alta densidade calórica, a maior presença de “beliscos” ou os conhecidos “snacks” entre refeições, principalmente acompanhados das atividades em frente a telas de televisão, celulares ou computadores. Esses aparelhos também costumam estar presentes nas principais refeições da família, como o almoço e o jantar.
Além disso, com a alta demanda de ordens para restrição de atividades fora de casa, alguns optam por comprar grandes quantidades de alimentos por vez e deixá-los “estocados”, na tentativa de reduzir saídas, e boa parte destes alimentos frequentemente são processados ou ultraprocessados que apresentam maior prazo de validade, com altas doses de açúcar livre, sal e gorduras que podem prejudicar a saúde a longo prazo, aumentando ainda o risco para o desenvolvimento de sobrepeso e obesidade. Em alguns casos, dependendo de onde a criança mora, são poucos os espaços de lazer ao ar livre com segurança, reduzindo assim o gasto energético diário e gerando um maior ganho de peso em curto prazo. Para crianças que realizavam boa parte das refeições na escola, e não podem mais contar com a mesma rotina alimentar, o isolamento social pode vir a reduzir a variedade e qualidade na alimentação o que, por outro lado, também pode predispor ao aumento de peso, uma vez que a insegurança alimentar e nutricional também está associada à obesidade.
Pensando naqueles que estão mais próximos da adolescência é importante, em especial, prestar atenção em quais conteúdos estão sendo consumidos durante as horas de acesso às redes sociais, uma vez que cresce o movimento de compartilhamento de rotinas de atividades, exercícios e alimentação entre muitos grupos on-line, o que pode ser positivo para a motivação à melhora de hábitos em um período tão desafiador, contudo, neste mesmo emaranhado de conteúdo, muitas vezes podem ser encontrados os altamente estigmatizantes de indivíduos acima do peso, ou que supostamente fracassaram na manutenção da saúde durante a pandemia, por não conseguirem seguir uma determinada rotina de treinos e alimentação. O movimento de conteúdos negativos em relação ao peso e formas corporais, muitas vezes expresso em “posts” que mostram fotos de antes e depois de pessoas que ganharam ou perderam peso no meio de um período desafiador, pode não somente desmotivar jovens para a melhora de hábitos, mas também estimular o aumento da insatisfação corporal e transtornos alimentares decorrentes, além de contribuir para a depreciação da autoestima.
De uma maneira geral, é importante lembrar que a quebra da rotina e os elevados níveis de estresse e ansiedade sob os quais crianças e jovens estão sendo submetidos no período atual, em associação com a impossibilidade de sair de casa para atividades de lazer (brincar ou sair com amigos), aumenta a procura de alimentos com maior densidade energética e que trazem maior “conforto”, sendo crucial voltar a atenção para a rotina das crianças dentro de casa, e em como as atividades realizadas podem estar acompanhadas de frequentes “belisques” de salgadinhos e doces.
É compreensível que muitos pais estejam buscando refeições prontas e alimentos processados como uma maneira rápida e barata de alimentar a família frente a uma realidade tão dura, contudo existem alternativas convenientes, acessíveis e saudáveis que também podem ser exercitadas durante o período de isolamento social. Aqui estão algumas orientações de como alimentar seus filhos com uma dieta variada e nutritiva que irá apoiar tanto seu crescimento e pleno desenvolvimento em período de altas restrições, quanto proporcionar uma melhora dos sistemas de defesa do nosso organismo contra infecções:
- Inclua seus filhos no planejamento, limpeza e preparo das refeições, exercitando de forma lúdica competências na área da matemática, biologia e escrita, gerando momentos ricos em diversão, aliados à exploração do mundo por meio de questionamentos como “como será que o pão cresce no forno?”, “quais nutrientes existem na cenoura?”, “vamos listar e contar todos os ingredientes para as compras?”;
- Otimize o pouco tempo disponível para o preparo e realização das refeições planejando-as. Pense nos ingredientes e preparações para cada dia da semana, dando o devido espaço e importância à alimentação;
- Faça de alimentos in natura ou minimamente processados a base das refeições;
- Utilize ingredientes como sal, açúcar e óleos em pequenas quantidades nas preparações;
- Dê maior funcionalidade ao tempo excessivo em ambiente doméstico, priorizando refeições em família, sem distrações com TV, celulares ou computadores. Ao invés disso, de ênfase na comunicação presencial que gera momentos prazerosos ao comer em família;
- Limite as compras de alimentos industrializados e/ou ultraprocessados, uma vez que estes alimentos contêm gorduras modificadas pela indústria de alimentos, sódio e açúcar em excesso, bem como outras substâncias químicas que não sabemos o que são, capazes de prejudicar a saúde cronicamente. Isso também se aplica para refeições prontas encontradas em supermercados.
- Minimize as idas à mercados ou centros de abastecimento de alimentos e insumos da sua região, buscando aderir às alternativas de compras por aplicativo, reduzindo o risco de contrair o vírus;
- Higienizar as mãos com álcool 70% antes e após manipular os alimentos que foram comprados, assim como as suas embalagens, recipientes, pacotes, frascos ou caixas.
- Lavar individualmente frutas, legumes e verduras antes de consumir em água corrente e solução de hipoclorito (proporção e tempo indicados na embalagem);
- Armazene adequadamente carnes e ovos sob a devida refrigeração, acondicionando-os em outros recipientes também higienizados e tampados;
- Congele porções de leguminosas e carnes em quantidades ideais para o consumo de quem mora na casa.
Referências:
Rundle, A.G., Park, Y., Herbstman, J.B., Kinsey, E.W. and Wang, Y.C. (2020), COVID‐19–Related School Closings and Risk of Weight Gain Among Children. Obesity, 28: 1008-1009. doi:10.1002/oby.22813
Pearl, R.L. (2020), Weight Stigma and the “Quarantine‐15”. Obesity, 28: 1180-1181. doi:10.1002/oby.22850
https://www.unicef.org/coronavirus/easy-affordable-and-healthy-eating-tips-during-coronavirus-disease-covid-19-outbreak. Acessado dia 28 de agosto de 2020.
GUIA PARA UMA ALIMENTAÇÃO SAUDÁVEL EM TEMPOS DE COVID-19 – ASBRAN (Associação Brasileira de Nutrição), 2020.