A alimentação dos adolescentes que já não era boa, agora está pior

Estudos recentes revelam mudanças preocupantes na alimentação dos adolescentes no Brasil e esse cenário tem muito a nos ensinar

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A adolescência é uma fase da vida em que mudanças importantes acontecem no organismo humano e na convivência social dos indivíduos. É na adolescência que o crescimento e a maturação de vários órgãos, inclusive os relacionados ao sistema reprodutor e imunológico, acontecem. Estima-se que, nesse período da vida, ganhamos, em média, 20% da nossa altura, 50% de nosso peso corporal e 40% da massa óssea que sustenta nosso corpo. É também na adolescência que acontece a maturação de neuro circuitos e intenso remodelamento do cérebro, o que permite que adolescentes tenham alta capacidade de absorverem novos aprendizados.

Essa plasticidade do cérebro é, no entanto, uma faca de dois gumes: se por um lado é essencial para o desenvolvimento intelectual dos adolescentes, também favorece que deficiências nutricionais nessa fase sejam capazes de causar déficits permanentes de cognição e de memória, além de desordens emocionais. Por outro lado, a obesidade na adolescência pode causar modificações importantes no centro do cérebro responsável pela sensação de recompensa, o que já foi associado a redução da sensação de saciedade e a comportamentos impulsivos com relação à alimentação, o que, entre outras coisas, faz com que a obesidade na adolescência aumente em 8 vezes a probabilidade de perpetuar a obesidade na vida adulta.

São fatos como esses que fazem da adolescência uma fase da vida em que a má nutrição é bastante preocupante. Então, afinal, como está a alimentação dos adolescentes brasileiros?

A Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é a principal fonte de informação sobre a alimentação dos brasileiros desde que incluiu no seu questionário uma sessão totalmente dedicada à coleta de dados sobre consumo alimentar, em sua edição de 2008-2009. Desde a primeira edição até a mais recente edição da POF, conduzida em 2017-2018, pesquisadores observaram modificações importantes no hábito alimentar dos brasileiros, especialmente dos adolescentes.

Se, em 2008, os adolescentes já tinham um consumo maior de alimentos ultraprocessados (refrigerante, biscoito, linguiça, salsicha, mortadela, sanduíches e salgados) e menor de feijão, saladas, verduras e frutas quando comparados a adultos e idosos, na edição da POF de 2017-2018, essa diferença ficou ainda mais preocupante.

Em um suplemento especial da Revista de Saúde Pública, publicado em 2021, pesquisadores do núcleo de assessoria técnica do IBGE apresentaram a comparação entre as duas edições da POF evidenciando que houve redução generalizada no consumo de arroz e feijão, carne, frutas, leite e seus derivados, pão, carne processada e refrigerantes em paralelo a um aumento no consumo de sanduíches e salgados em todas as faixas etária, mostrando que a sociedade brasileira caminha para uma substituição do padrão alimentar tradicional por um padrão alimentar importado das grandes potências ocidentais, como os Estados Unidos da América, onde a prevalência de obesidade é assustadoramente alta.

Mas o resultado mais preocupante ainda está por vir. A redução no consumo de frutas foi maior nos adolescentes, enquanto a redução dos refrigerantes foi menor nesse mesmo grupo, fazendo com que a qualidade da alimentação dessa faixa etária se distancie ainda mais das demais – o que já não estava bom em 2008, tornou-se ainda pior em 2017.

E, para mostrar a seriedade desse cenário, os pesquisadores traduziram os impactos dessas mudanças no padrão da alimentação dos adolescentes em mudanças na ingestão de micronutrientes importantíssimos para a saúde nessa fase da vida. Em ambos os sexos, o consumo de sódio aumentou. Nos adolescentes do sexo masculino, de 2008 a 2017, a ingestão de cálcio, que já estava baixa em 97,4% dos adolescentes, agora atinge 98,1% deles.

Mas é nas meninas que o cenário é realmente crítico: a ingestão baixa de cálcio passou de 98% para 99%; a de magnésio aumentou de 58% para 65%; a de fósforo, de 64% aumentou para 71%; a de zinco, de 21% foi para 26%; a de vitamina A, de 69% aumentou para 79%; a de riboflavina (vitamina B2) foi de 27% para 40%; e a de piridoxina (vitamina B6), de 71% para 76%.

Se expostos por tempo prolongado a essas deficiências, os adolescentes podem acabar com quase todos os processos de desenvolvimento do organismo comprometidos. A deficiência de cálcio, por exemplo, além do comprometimento para a formação da massa óssea, principal destino do cálcio no organismo, também compromete o crescimento, impedindo que o adolescente atinja o potencial de altura esperado para a vida adulta. Por sua vez, deficiências de vitamina A e piridoxina, às quais as meninas brasileiras parecem estar sujeitas, podem causar anemia – isso mesmo! Não é apenas a deficiência de ferro que pode causar a redução na quantidade de glóbulos vermelhos no sangue – e a anemia em adolescentes pode comprometer a função do sistema imunológico, o rendimento escolar (muitas vezes com prejuízos ao sucesso profissional desses indivíduos e para a sociedade), e promover alterações comportamentais e emocionais também bastante danosas.

Mas, então, como ajudar nossos adolescentes a aderirem a uma dieta mais saudável? Essa pergunta foi o que estimulou os cientistas a estudarem o comportamento alimentar dos adolescentes em busca de fatores que influenciam as escolhas alimentares nessa faixa etária, a fim de desenhar estratégias que possam utilizar esses fatores a favor de escolhas alimentares saudáveis e sustentáveis.

Segundo um amplo levantamento publicado pela revista científica The Lancet, uma das mais importantes da área da saúde, o ambiente alimentar é o fator mais importante para moldar o padrão alimentar dos adolescentes ao redor do mundo. Isso porque é nessa fase também que o remodelamento cerebral combinado a altas taxas do hormônio testosterona no sangue favorecem a influência social nas decisões dos adolescentes, aumentando o desejo por independência e autonomia, bem como uma tendência a se arriscarem mais para ganharem aceitação e status entre seus colegas.

É nesse contexto de elevada busca por aceitação social e identidade que, segundo o levantamento, os adolescentes se importam menos com a qualidade nutricional e com o sabor do que estão comendo e mais com o ato de comer com amigos e, em alguns contextos, com a família. O ato social de se alimentar, portanto, tem mais valor para o adolescente do que o papel biológico dos nutrientes.

O valor social da alimentação não seria um problema se esses adolescentes estivessem inseridos em um ambiente onde a alimentação tradicional, composta de alimentos locais e in natura, rica em significado e, também, em nutrientes fosse mais propagandeada do que o padrão alimentar importado de outros países e difundido pelas multinacionais produtoras de alimentos.

Entretanto, o cenário no qual o adolescente brasileiro se insere é dominado pelo marketing agressivo das grandes marcas de alimentos ultraprocessados, quase onipresentes – na televisão, nos filmes, nos vídeos do YouTube, nos games, na disposição dos produtos nos supermercados, na venda casada, nas embalagens, no patrocínio de atletas e ídolos e, não menos importante, nas redes sociais.

O que aprendemos com esse cenário, então, é que a adolescência não só é um período crucial para o desenvolvimento humano, mas pode ser também uma janela de oportunidades para a educação nutricional e para modificações no ambiente alimentar.

Munir os adolescentes de argumentos para que façam suas escolhas menos influenciados pelo marketing de alimentos e mais influenciados por sua cultura, valorizando outros aspectos da alimentação tradicional, como, por exemplo, sua contribuição para a preservação do meio ambiente – já que é nessa fase que o engajamento em causas humanitárias e ambientais também aflora de forma mais intensa – pode ser um meio de direcioná-los a melhores decisões, sem, no entanto, privá-los da independência e da autonomia tão essenciais nessa fase da vida. E, por que não? Usar os recursos de mídias, especialmente as redes sociais a nosso favor.

Por outro lado, o ambiente alimentar, como acabamos de aprender, é um fator muito mais influente nessa faixa etária do que o conhecimento e a educação sobre alimentação saudável. Logo, não veremos grandes mudanças sem um comprometimento de agentes públicos e privados que possam, por exemplo, mas não somente, modificar a oferta de alimentos das cantinas; controlar o marketing agressivo das grandes marcas; ou, ainda, melhorar o acesso financeiro e físico aos alimentos tradicionais de cada região do Brasil através de incentivos fiscais e políticas públicas.

Referências:

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  2. Pesquisa de orçamentos familiares 2008-2009 : análise do consumo alimentar pessoal no Brasil / IBGE, Coordenação de Trabalho e Rendimento. – Rio de Janeiro : IBGE, 2011. 150 p.
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  4. Shane A Norris, Edward A Frongillo, Maureen M Black, Yanhui Dong, Caroline Fall, Michelle Lampl, Angela D Liese, Mariam Naguib, Ann Prentice, Tamsen Rochat, Charles B Stephensen, Chiwoneso B Tinago, Kate A Ward, Stephanie V Wrottesley, George C Patton. Nutrition in adolescent growth and development. The Lancet, Volume 399, Issue 10320, 2022, Pages 172-184, ISSN 0140-6736. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(21)01590-7.
  5. Verly-Jr E, Marchioni DM, Araujo MC, De Carli E, Oliveira DCRS, Yokoo EM, et al. Evolução da ingestão de energia e nutrientes no Brasil entre 2008–2009 e 2017–2018. Rev Saude Publica. 2021;55 Supl 1:5s. https://doi.org/10.11606/s1518- 8787.2021055003343.
SOBRE A AUTORA:

Marina Maintinguer Norde
Nutricionista, mestra e doutora em Nutrição em Saúde Pública (FSP-USP), pesquisadora colaboradora do Laboratório de Investigação em Diabetes e Metabolismo, vinculado ao         Centro de Pesquisa em Obesidade e Comorbidades, atuando em pesquisas epidemiológicas, estudando a qualidade da alimentação da população brasileira e seus reflexos na saúde.

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